Marcelo Ninio – Jerusalém

Embora os protestos contra o regime sírio continuem crescendo a cada semana, a realidade é que o país está rachado ao meio, diz Joshua Landis, diretor do Centro de Oriente Médio da Universidade de Oklahoma (EUA).

Referência em estudos e coleta de dados sobre a Síria, Landis diz que o ditador Bashar Assad segue firme no poder graças à lealdade do Exército. Em entrevista à Folha, ele previu que só uma ação militar estrangeira poderá derrubar o regime sírio.

Folha – Descontados os exageros nas informações divulgadas pelos dois lados, qual a real situação na Síria?
Joshua Landis- Os sírios estão divididos ao meio. Nós vimos as manifestações nesta semana de apoio ao regime, com a gigantesca bandeira em Mezzeh. Mas Mezzeh é um bairro burguês de classe média alta de Damasco. É o epicentro do apoio ao regime nas grandes cidades. É um bairro de classe média alta sunita. Mas a manifestação mostra a divisão de classes que a Síria está vivendo. Nas regiões mais pobres há uma ampla hostilidade ao regime, sobretudo entre os mais jovens. O apoio ao regime é definitivamente maior do que aparece na mídia ocidental, que está apaixonada pela oposição. Afinal, a Síria tem sido um regime fechado e autoritário por 50 anos, desde que o partido Baath assumiu o poder, em 1963. A religião do Ocidente é a democracia. A narrativa descrita pela oposição é de uma luta popular por liberdade contra um ditador e a crueldade de sua família. Mas essa é apenas parte da história. Há uma outra realidade, que é a de uma sociedade profundamente dividida. As classes média e alta, os mais velhos e a maioria das minorias vêem esse regime autoritário de forma positiva, porque trouxe estabilidade e evitou que o país mergulhasse numa guerra civil. O Ocidente não sabe o que é uma guerra civil ou qualquer outra guerra por tanto tempo que esqueceu os benefícios da estabilidade. A Segunda Guerra Mundial aconteceu há tanto tempo que as pessoas esquecem isso. E o problema é que a Síria está situada entre o Líbano e o Iraque, dois países que viveram guerras civis devastadoras.

Nesta semana um proeminente líder cristão cristão manifestou apoio ao regime. É um sentimento sincero?
Absolutamente, e isso é algo que interessará aos brasileiros, pois há muitos descendentes de sírios cristãos no Brasil. Quando os cristãos do Líbano e da Síria olham para a sua história entram num estado de total medo e ansiedade. Os cristãos eram 20% do Levante antes da Primeira Guerra Mundial. A Turquia, durante e logo depois da guerra, fez uma limpeza étnica de seus cristãos. Matou cerca de 1,5 milhão de armênios e afugentou milhares para a Síria. Muitos dos cristãos da Síria são refugiados da Turquia. Depois, o caos no Iraque forçou metade de seus cristãos a fugir do país após o colapso do regime de Saddam Hussein. E os cristãos olham o que acontece com os coptas no Egito e ficam com medo de que a democracia trará a Irmandade Muçulmana e mais fundamentalismo. Quase não há mais cristãos na Palestina, onde costumavam ser 10%. Hoje não passam de 1%. No Líbano, a autoridade política dos cristãos maronitas está em declínio desde o início da guerra civil, em 1975. Para um cristão sírio, o futuro é obscuro. Eles acreditam que o fundamentalismo islâmico nacionalista expulsou os cristãos de suas terras tradicionais. A Síria sob a família Assad, por sua vez, apoiou as minorias e tornou-se um dos últimos refúgios dos cristãos. Com o colapso desse regime, eles acreditam que a Síria se tornará um país hostil para os cristãos. E não são só os cristãos. Drusos e alauítas tem o mesmo sentimento.

E a Irmandade Muçulmana?
Não é tão simples. A Síria sempre foi um lugar de diversidade e considerável equilíbrio, diferente da Arábia Saudita e do golfo. Os opositores dizem que respeitam os cristãos, mas ninguém sabe o que vai acontecer. As mesmas promessas foram ouvidas no Iraque quando os EUA derrubaram o governo de Saddam. Os americanos disseram que iriam construir um regime secular, mas fracassaram. Quem conheceu as universidades sírias e a classe média do país nos 1960 e 1970 sabe que só 20% das meninas usavam o hijab (lenço muçulmano). E hoje essa proporção é de 80%. Há um crescimento da observância islâmica e do fundamentalismo. As classes média e alta sunitas na Síria são bastante liberais e têm uma tradição de convivência com os cristãos. Mas, à medida em que se desce, na escala social há mais fundamentalismo e ideias hostis aos cristãos. Esse é o problema, ninguém sabe o que vai acontecer. Pode ser que haja um período de fundamentalismo seguido de liberalismo, como no Irã, onde nos primeiros anos da Revolução Islâmica houve uma guinada para o fundamentalismo, de cinco, seis anos, mas hoje o país é bem mais aberto e menos estrito. Não há dúvida, porém, que os islamitas serão uma força política bem maior do que eram antes.

A Síria caminha para uma guerra civil?
Os militares por enquanto mantem o controle. Há deserções e divisões e acho que elas irão aumentar. Essas deserções afetam a legitimidade do regime, mas ainda não desafiam sua autoridade. Enquanto a liderança do Exército permanecer firme, e o núcleo das Forças Armadas continuar solidamente apoiando o regime, será muito difícil derrubar o governo. A não ser que um Exército estrangeiro intervenha, o que é difícil de imaginar no momento. EUA, França e Reino Unido não estão dispostos a invadir a Síria. Acho que eles já estão arrependidos do que fizeram em relação à Líbia. A Síria é como o Iraque. É um país grande, com uma população de 23 milhões, dividido etnicamente e com uma oposição fraca e fragmentada. Tem muitas semelhanças com o Iraque. Com o mundo sofrendo dificuldades financeiras, particularmente o Ocidente, os EUA envolvidos em três guerras, Iraque, Afeganistão e Líbia, invadir a Síria parece um projeto grande demais.

A maioria no fundo prefere que Assad continue no poder?
Se pudessem tirar Assad do poder e ter uma Síria estável num estalar de dedos, acho que todos fariam isso. Mas isso não é uma opção. E Assad está usando todos os meios para evitar que isso aconteça. Todas as potências regionais, incluindo a Turquia, a Arábia Saudita e até Israel, condenam a Síria, lamentam a violência, mas não veem uma alternativa. Não querem mandar soldados para a Síria, porque isso significaria uma operação como a do Iraque, que custou US$1 trilhão (R$ 1,6 trilhão). E a maioria dos americanos acha que foi dinheiro jogado fora.

O que precisa acontecer para o regime sírio cair?
Ou o Exército entra em colapso, o que não parece estar acontecendo, ou acontece uma intervenção militar externa, como no Iraque ou na Líbia. Se o Exército ou mesmo metade dele, se mantiver leal ao regime, é muito difícil derrubá-lo. Uma intervenção externa é improvável. O secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, criticou membros da Otan por não colocar dinheiro nem se dispor a participar de operações militares. São um bando de covardes que não querem colocar nem um centavo para derrubar o governo líbio. Se não tem dinheiro nem interesse em derrubar o governo líbio, certamente não investirão para derrubar o regime sírio, que é uma operação bem mais difícil.

Qual a base de sustentação do regime sírio?
O segredo do regime Assad é que ele construiu a estabilidade por meio de lealdades tradicionais. Isso significa, em primeiro lugar e acima de tudo, membros da família. Seus irmãos são a base da lealdade, mas há também a comunidade alauíta. A maioria dos militares de alta patente e os comandantes da segurança é alauíta, que tem muito a perder se esse regime cair. Por isso a lealdade está em primeiro lugar. Isso significa que o regime é extremamente estreito no topo e por isso cometeu tantos erros, tanto na economia como na política.
Assad se cercou de membros da família e tornou o regime à prova de golpes. Lembre-se, a Síria foi uma república de bananas por 25 anos antes de Assad tomar o poder em 1970. Havia golpes e tentativas de golpe quase todo ano. Esse é um dos motivos de a família se manter no poder. As pessoas não querem um retorno aos dias de república de bananas e certamente não querem acabar como o Líbano e o Iraque, mergulhados numa guerra civil por anos, com 4 milhões de refugiados, como vimos no Iraque. A classe média sunita tem muito a perder com uma guerra civil e as minorias temem o domínio do islã fundamentalista.

Há também o legado do passado colonial. Em grande medida, a Síria ainda vive uma ordem pós-colonial. Quando os franceses conquistaram o Mashrek (parte oriental do Oriente Médio), para instalar seu poder contra a maioria nacionalista sunita, eles criaram um Exército baseado em minorias. Na Síria os alauítas eram uma das principais minorias. Quando os franceses foram embora, em 1946, os alauítas foram capazes de chegar ao poder e colocar de lado a liderança sunita. É por isso que os alauítas estão no poder na Síria.

Há sinais de um conflito sectário?
Está ficando mais sectário, embora nenhum dos dois lados queira isso. O temor é de que se transforme numa guerra entre sunitas e alauítas. Até agora isso não aconteceu. A sociedade está profundamente dividida, mas os sunitas sabem que se houver uma divisão sectária não há vitória fácil, será uma longa guerra, como no Iraque. Pensando nisso, muitos concluem que o regime não é tão mau. Este é o terrível dilema. O Exército vai continuar fazendo que tem feito, será uma disputa longa e dolorosa, mas em algum momento, se a oposição não puder vencer, terá que desistir. A grande questão é se a comunidade internacional intervirá antes que isso aconteça. A segunda questão é o que acontece se eles desistirem. A Síria poderá se reintegrar à comunidade internacional ou passará ser vista como um regime criminoso, da mesma forma que o regime de Saddam Hussein era visto?

Sanções funcionam?
Não, parte da oposição está tentando convencer a comunidade internacional a aplicar sanções econômicas mais duras, mas isso poderia recriar um cenário como o do Iraque de Saddam Hussein. Segundo a ONU, 1/3 dos iraquianos morreram por causa dos problemas econômicos causados pelas sanções internacionais.

O Brasil tem relutado em apoiar uma resolução condenando a Síria. O sr. entende a hesitação?
Esta é uma boa pergunta. O que vemos na Líbia é que a situação está se deteriorando. No momento em que há sanções e condenações, a próxima medida é a ação militar. É o que aconteceu no Iraque e na Líbia. Os próprios sírios quase unanimemente dizem que não querem uma intervenção estrangeira, o que pode servir de consolo para o Brasil. Entendo a cautela do Brasil, da Rússia e de outros países. Essas coisas tendem a sair do controle com muita rapidez. Há uma pressão intensa do Ocidente para que se faça algo em relação à Síria, principalmente por causa da fronteira com Israel.

Há poucos dias foi revelado um documento comprovando que o regime sírio estimulou os protestos na fronteira com Israel para desviar a atenção dos problemas internos. Essa tática poderia levar a uma escalada entre os dois países?
Não acredito que a Síria embarque numa guerra contra Israel. Não seria uma guerra, mas um massacre. Israel arrasaria a Síria. O Exército sírio mal consegue reprimir os protestos dentro do país, portanto não teria a menor chance contra o quarto Exército mais sofisticado do mundo. Se Israel pode atacar a Síria, por vingança? É possível.

O governo da Turquia, que era um dos mais próximos da Síria, passou a criticar duramente a violência do regime. Essa mudança pode ter algum impacto sobre o clã Assad?
As críticas foram feitas no meio da campanha eleitoral turca, porque era bom politicamente. Mas a Turquia hoje certamente não quer nenhum envolvimento militar na Síria. Assad fará tudo o que puder para se manter no poder. Ele já anunciou reformas limitadas. Mas qualquer reforma que implemente será insignificante, porque o país vive uma guerra incipiente.
A Turquia tem mais influência do que qualquer outro país sobre a Síria, os dois países dividem mais de 500 km de fronteira.. Mas a Turquia também é vulnerável à Síria, já que 10% da população síria é de curdos. Muitos vivem perto da fronteira turca. A Síria ajudou a Turquia nos últimos 15 anos a derrotar o PKK (grupo armado curdo), que liderou a ação militar contra o Estado turco. Se a Turquia tomar uma atitude muito drástica, a Síria pode ajudar e encorajar esses curdos a atacar a Turquia, o que reabriria a questão curda. Mais de 30 mil turcos foram mortos na guerra contra os curdos na Turquia. Isso significa uma vulnerabilidade da Turquia.

Quem é a oposição síria?
Ninguém realmente tem a resposta. A oposição na Síria sempre foi fragmentada e esse é um dos motivos de o regime sírio ter se mantido absoluto no poder por tanto tempo. A oposição é fraca e dividida. A maior parte dos protestos atuais tem sido feitos por ativistas jovens, de 20, 30 anos, que nós não conhecemos, porque eles estão lutando em segredo e sem unidade. No recente encontro entre oposicionistas na Turquia, houve tensão considerável. Curdos, fundamentalistas islâmicos, seculares, ativistas jovens, representantes das minorias. Quase todos os elementos da sociedade síria estavam lá, mas não houve um consenso.

A repressão tende a levar à vitória do regime?
Os oposicionistas não vão desistir tão cedo. A sensação deles é de que estão vencendo, que os protestos crescem a cada semana e que quanto mais repressão, mais o regime ficará enfraquecido, porque a pressão da comunidade internacional aumentará. Os protestos começaram a se espalhar para as redondezas de Aleppo e Damasco, as duas maiores cidades do país, e poderão chegar aos centros das cidades. Se a instabilidade continuar, em cinco ou seis meses a economia síria poderá entrar em colapso. Não há dinheiro entrando no país e o regime está despejando dinheiro para tentar fazer com que as pessoas parem de protestar. Aumentou os subsídios, elevou os salários de funcionários público, gasta milhões com o Exército, e não há receita. A situação econômica está se deteriorando e pode virar uma bomba-relógio. Esta é a verdadeira vulnerabilidade do regime.

O próximo passo poderá ser uma oposição armada, como na Líbia?
Sim, seria natural que esse fosse o próximo passo. Mas para que a insurgência continue é preciso conquistar território, para que os opositores comecem a organizar um exército rebelde com os desertores e recolham armas, como acontece em Benghazi [Líbia]. Para isso é preciso conquistar território, o que o governo sírio não permitiu ainda que aconteça. O governo está usando força máxima para manter o controle do território e não permitir que os opositores se organizem.

Há indicações de que a família e o entorno do ditador Bashar Assad dão as cartas. Ele perdeu o controle?
Não acho. A família Assad dominou o país por 40 anos porque administra o país como um negócio de família. E a família Assad continua funcional, ao contrário da família de Saddam Hussein, que era um desastre. Há uma divisão de tarefas. O presidente tem estado fora do olhar público porque ele é a imagem do regime e todos estão tentando protegê-lo. Maher Assad [irmão do presidente, comandante da Guarda Republicana] tem tomado a dianteira na repressão, para que o presidente possa manter a imagem de reformista. Talvez isso permita uma reintegração no futuro. Mas eles trabalham juntos e sabem que se começarem a se apunhalar pelas costas será o fim do regime.

A Primavera Árabe conseguirá superar as lealdades tribais e sectárias no Oriente Médio e instalar a democracia na região?
Obviamente que desenvolver um sentido de integridade nacional e colocar os interesses coletivos acima das lealdades familiares é muito difícil e não vai acontecer do dia para a noite. Será um longo processo, mas não é impossível. A Primavera Árabe despertou a esperança de que o Oriente Médio entre numa trajetória que supere esse padrão. Há dois tipos de regimes. Os que conseguiram implantar um sentido de nação, como Egito e Tunísia, onde os Exércitos ficaram a favor do Estado e não do governo. Mas outros países fracassaram em criar essa unidade política, como Iraque, Líbano, Síria, Iêmen e Líbia. Esses terão muita dificuldade em criar uma resposta democrática para os enormes problemas sociais que enfrentam.

Folha – Como o sr. obtém dados confiáveis sobre a situação na Síria em meio à guerra de informação?
Estou estou em Oklahoma, bem longe da Síria. Mantenho o site “Syria Comment” e estou em contato com muitos sírios todos os dias. A maioria é de sírios que vivem no Ocidente que mantem contato com suas famílias e amigos na Síria e me transmitem o que ouvem. Também tenho família no país, com quem falo quase todos os dias, minha mulher é síria. Mas, claro, nunca dá para saber se alguém está mentindo. É muito difícil saber o que realmente está acontecendo. Ontem um leitor me ligou de Viena, furioso, me criticando porque eu escrevi que parte da oposição não estava dizendo a verdade sobre os combates em Jisr al-Shughur. Esse leitor me disse que, mesmo se os opositores estão mentindo, e ele acha que eles não mentiriam, porque são camponeses, qualquer coisa que cause danos ao regime é legítima. Ele acha que mentir é legítimo em favor da causa, porque os fins justificam os meios. Eu acho que os dois lados, na atual situação, acreditam que aumentar a verdade ou fabricar histórias é legítimo, no que eles vêem como uma batalha entre o bem e o mal.

FONTE: Folha.com

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