Entrevista realizada por Guilherme Poggio e Fernando “Nunão” De Martini em 12 de fevereiro de 2012 – compilada por temas conversados ao longo de cerca de 3 horas de gravação (este conteúdo foi bastante editado para caber no final da matéria do Osório)

Infância e gosto por assuntos militares

Eu sou da cidade de Santos [litoral do estado de São Paulo]. Nasci na Vila Belmiro. A família da minha mãe era de lá, mas o pai dela era de Ubatuba. Ele foi para Santos muito jovem porque lá em Santos tinha muito mais possibilidade de trabalho do que em Ubatuba. Desde criança eu gostava de armas. Meu avô era caçador. A maior mágoa que eu tenho é que ele morreu quando eu tinha um ano de idade porque poucas vezes existiria um avô e um neto tão entrosados. Ele adorava armas e tinha um monte delas. Infelizmente ele faleceu com 59 anos de diabetes e eu nem cheguei a conhecê-lo. De qualquer forma acho que é uma questão de DNA.

Meu pai fez Tiro de Guerra por volta de 1920 e dois tios meus, pelo menos, também. Um deles fez o Tiro de Guerra Naval, que era dos Fuzileiros Navais em Santos. Havia uma grande rivalidade entre os Tiros de Guerra lá em Santos. Naquele tempo o serviço militar era o Tiro de Guerra. O sujeito não servia em uma unidade. Eu me lembro, com 10 ou 11 anos de idade, de ter encontrado o manual do Tiro de Guerra do meu tio. E com essa idade eu li o manual e já sabia como era organizado o Grupo de Combate, que naquela época era dividido em dois grupos. Metade era com a metralhadora e a outra metade era de volteadores, soldados armados de fuzil e granada.

Este era basicamente o grupo de combate francês, trazido pela missão militar francesa, que foi usado até a Segunda Guerra Mundial se não estiver enganado, mas isso eu deixo para os historiadores. Hoje ainda existem Tiros de Guerra em locais onde não há unidades do Exército. Por que houve uma tendência de acabar com os Tiros de Guerra? Porque eles chegaram à conclusão que o tipo de treinamento que eles davam não era um treinamento adequado para a guerra moderna. Se eclodisse uma guerra, a única coisa que o sujeito saberia fazer é ordem unida e, talvez, montar e desmontar um fuzil Mauser 1908. Então a partir de 1950, mais ou menos, eles passaram a convocar o pessoal para o serviço militar em unidades do Exército.

Interesse pela Engenharia e docência

Eu sempre gostei de engenharia e houve grande incentivo do meu pai. Meu pai iria estudar engenharia, mas por motivos econômicos e uma série de outras coisas ele acabou indo trabalhar e à noite fazia curso de contabilidade. Eu fiz engenharia na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), que na época em que eu estudei ficava no antigo prédio do Colégio Paulistano na Rua São Joaquim [cidade de São Paulo].

No fim acabei dando aula lá, [já quando o curso havia se mudado para São Bernardo do Campo] sendo um dos primeiros professores do curso de engenharia automobilística. Se eu não me engano foi de 1964 até 1977. Na época eu trabalhava na Chrysler e depois na Ford. Eu saía do trabalho e em cinco minutos estava na FEI. Eu dava aula da seis da tarde até oito da noite, além das aulas no Sábado. Muito da minha aula era baseada em função daquilo que eu trabalhava. Então eu estava a par das últimas coisas de engenharia automobilística. Deixei de dar as aulas quando fui para a Engesa, que ficava distante da FEI e porque na Engesa eu não fui trabalhar diretamente na engenharia.

Eu fui professor de projeto de veículos e quando eu ia dar aula eu sempre procurava, antes de entrar em muitos detalhes, colocar o assunto no contexto geral do que se tratava. Por exemplo, suspensão independente. Por que suspensão independente? Por causa disso, disso, disso. Contava o histórico, como a coisa evoluiu, etc. Depois, no final, aí eu entrava com as equações matemáticas, dava as explicações, etc. Eu acho que isso falta muito nos professores. Os professores se preocupam muito em chegar e fazer equações fantásticas e soberbas sem ter a menor idéia do que é aquilo.

Indústria automobilística e passagem para a Engesa

Assim que eu me formei fui direto para a Vemag [fábrica brasileira de automóveis que foi adquirida pela Volkswagen em 1967], porque o meu professor de desenho era gerente da engenharia de produtos da Vemag. Sabendo ele que eu gostava de automóveis ele me contratou durante uma aula do quinto ano, quase no fim do curso. Lá eu fiquei oito anos e depois fui para a Chrysler e, posteriormente Ford. Sempre na área de projetos.

Eu era muito amigo do Rigoberto Soler Gisbert, um espanhol que fez o projeto do Uirapuru, o primeiro carro construído no Brasil. Eu o conheci na época da Vemag, onde ele era projetista. Ele foi trabalhar na Engesa e surgiu a chance de ter um contato com o José Guilherme Whitaker Ribeiro, um dos executivos da empresa e irmão do José Luiz Whitaker Ribeiro, dono da Engesa.

Nós conversamos e ele achou que eu tinha um bom conhecimento de assuntos militares, além do ‘background’ de engenharia. Eu estava querendo sair da Ford mesmo e fui para a Engesa em setembro daquele ano como assessor técnico do diretor de compras. Na época a Engesa tinha fechado um contrato com o Iraque e o primeiro trabalho que eu fiz lá foi comprar material para atender a este contrato, principalmente rádios VHF/HF para os carros.

EE-T1 Osório

O programa Osório e contribuição pessoal no projeto

Quando nós íamos definir o que seria o Osório, o José Luiz teve uma idéia. Ele disse: ‘vamos convidar dois ou três sujeitos famosos neste campo para ver qual a opinião deles’. Ou seja, seria uma confirmação de que nós não estávamos fazendo nada absurdo. Então foram convidados dois. Um deles foi o professor Richard Marian Ogorkiewicz, um “polonês-inglês” que escreveu o primeiro livro descente sobre o que são as tropas blindadas, veículos, etc. e o outro foi o Christopher Foss, editor da Jane’s Armour and Artillery. Eles vieram separados. Primeiro veio um e na semana seguinte o outro. Eles ficaram dois ou três dias e um grupo de engenheiros da Engesa, incluindo eu, ficou discutindo o tema com eles.

Embora fossem especialistas no tema, nenhum dos dois havia trabalhado na indústria de defesa. E por esse motivo a questão era mais mercadológica do que técnica, porque a questão técnica, por mais incrível que pareça, saiu tudo da Engesa. Partimos do zero.

Nós íamos contratar um camarada para desenvolver o Osório. Mas na hora de ele ser contratado recebeu uma contra-oferta de onde trabalhava, acho que era na Mercedes. Como ele não veio, a turma falou: “Vamos pegar um dos nossos mesmo e vamos botar o camarada como chefe do programa”. E este foi o Paulo André del Negro, que começou o programa do Osório. Depois de mais ou menos seis meses ou um ano eles promoveram o Paulo para ser o gerente de produção da fábrica de São José dos Campos. E o Odilon [Lobo de Andrade Neto] veio para assumir o cargo do Paulo no projeto.

Foi aí que eu dei a minha contribuição para o Osório, que foi a suspensão hidropneumática. Tinha sido decidido que o carro teria barras de torção, um sistema de suspensão bastante convencional. A barra de torção tem um defeito. Ela aumenta a altura do carro porque você tem que passar a barra dentro dele. Se você procura por um carro mais baixo, o ideal é uma suspensão que não seja penetrante, isso falando de forma sucinta.

Naquele ano nós fomos até Brighton, na Inglaterra, para a feira de componentes de defesa [“Defence Components Exhibition”]. Eu passei em um dos estandes da Vickers e conheci um dos gerentes de vendas que foi oficial do 3º Regimento. Conversamos sobre vários assuntos e ele me disse que estava fazendo a suspensão hidropneumática para o [carro de combate inglês] Challenger. Voltei para o nosso grupo e pedi que o Paulo André me acompanhasse até o estande da Vickers para ver a suspensão hidropneumática.

Ele me disse: “pelo amor de Deus Bacchi, não me fala mais nisso. Nós já decidimos pelo uso da barra de torção. Eu não vou mudar esse troço”. Convenci-o e nós voltamos lá. O Paulo André engoliu o negócio e nós marcamos uma reunião na fábrica após a exposição. Fomos lá e eles fizeram uma apresentação mais completa e daí veio a suspensão hidropneumática do Osório. A suspensão hidropneumática é uma coisa tremendamente lógica porque combina mola com amortecedor, melhorando um pouco mais porque você tem mais recursos. E o Challenger foi o primeiro carro de combate a ter suspensão hidropneumática.

EE-T1 Osorio em provas na Arábia Saudita

A única coisa que a Engesa não fez no Osório foi a torre porque era um problema de tempo. O José Luiz queria ter tudo pronto em um ano e pouco. Era o prazo que a gente tinha. Nós trabalhávamos contra o tempo para ter o carro pronto para ser demonstrado na Arábia Saudita. Tudo surgiu de um requisito do Exército Saudita de um veículo para substituir o AMX-30. Inicialmente eles se interessaram pelo Leopard, mas a Alemanha não quis vender. Então eles abriram uma concorrência e havia um prazo curto.

Nós tínhamos que fazer um carro completo nesse prazo curto e não dava para fazer tudo. Nós fizemos um acordo com uma das Vickers e queríamos que eles fizessem o projeto da torre. Eles disseram: “não, nós não vamos fazer o projeto para vocês. Nós gostamos da idéia e queremos uma torre como essa como opção para nós vendermos. Nós vamos fazer o projeto e vamos dar opção para vocês utilizarem essa torre no Osório. Inclusive vocês poderão fabricar a torre no Brasil após a compra de um determinado número de unidades.”

Uma coisa que eu sempre digo é que o problema no Brasil não é um problema de tecnologia. É simplesmente  um problema de cifrão. Tudo se resolve. A única coisa é ter dinheiro. Tendo dinheiro dá para fazer qualquer coisa no Brasil. Nós saímos do zero. Um grupo de engenheiros quase recém-formados projetou o Osório. Não era nenhum sujeito com 50 anos experiência. O mais antigo lá deveria ter três ou quatro anos de prática

Irá, Iraque, Osório e versões do Urutu

Nós oferecemos [o Osório] para o Irã. Uma delegação iraniana foi recebida secretamente na Engesa porque oficialmente o governo brasileiro tinha se colocado ao lado do Iraque. Então qualquer coisa com o Irã era proibida. Nós recebemos a delegação num domingo. Eles passaram a manhã inteira lá. Fizemos uma apresentação, mas não deu em nada.

Não [oferecemos o Osório ao Iraque]. Naquela época eles tinham interesse em desenvolver um veículo destinado a fazer a designação de alvos inimigos. Descrevendo sucintamente o sistema, tratava-se de um veículo equipado com um sistema de designação de alvos a laser que fornecia a distância até o alvo. O periscópio tinha um sensor que determinava o ângulo de inclinação do espelho. Ou seja, ele determinava qual era a altura relativa daquele ponto em relação à base onde nós estávamos. Havia também outro dispositivo que media o ângulo de rotação em relação à linha de centro do carro. Sendo assim, era determinada a distância, a altura do alvo em relação à altura de onde estava o carro e o ângulo entre o alvo e a linha de centro do carro. Aí o carro deveria ter um sistema de navegação terrestre que desse as coordenadas geográficas de sua localização e através de um computador as informações seriam processadas, sendo possível o cálculo da coordenada do alvo.

Nós montamos este equipamento em um Urutu. Os equipamentos de visão eram de uma firma inglesa e os de navegação eram de uma empresa francesa. Fomos até a frente de batalha para demonstrar o sistema. O veículo foi aprovado, mas a guerra acabou antes que um contrato fosse assinado. Foi uma das últimas coisas que eu fiz na Engesa.

EE-11 Urutu

Uma vez um camarada veio até mim com essa ideia esdrúxula [do Urutu lança-chamas]. Teria que ser um carro muito pequeno ou bastante blindado pra resistir, pois um veículo como este teria que ir lá à frente. O lança-chamas tem um alcance de 50 a 60 metros. Você pode usá-lo contra um inimigo que não tem muitos meios de defesa. No Vietnã funcionava contra guerrilheiros e não contra o exército do Vietnã do Norte.

Um dos oficiais que deixaram o EB e foi trabalhar na Engesa queria o desenvolvimento de uma versão meia-lagarta do Urutu. Havia informações de que o Chile estaria interessado neste veículo. Na época eu era o gerente de marketing de produtos militares. Em tese, os produtos militares da Engesa deveriam ter o meu aval. Eu acho que a turma não queria aquele troço então falaram para ele:  “Olha, vai falar com o Bacchi e se ele concordar a gente faz”. Eles inventavam as coisas e depois eu tinha que engolir. Mas acho que aquele eles não queriam mesmo e sobrou para mim. Eu disse a ele: “General, o senhor me desculpe mas a solução do meia-lagarta era uma sensacional solução em 1935 quando os veículos de rodas não tinham as qualidades excepcionais que tem hoje.

Então o meia-lagarta era uma solução quebra-galho. Tanto que o Exército Americano como o Exército Alemão utilizaram em profusão. Mas hoje eu não vejo o menor sentido. Para mim o meia-lagarta morreu. Acabou. Eu cansei de ver ao longo dos anos protótipos de meia-lagarta que morriam como protótipo. Tempos depois eu descobri no Jane’s [Jane’s World Armoured Fighting Vehicle]  um meia-lagarta que foi feito pela Cardoen do Chile e os chilenos chegaram até a fase de protótipo. Chamava-se Alacran. Era muita coincidência as duas informações. Um 6×6 ou um 8×8 faz tudo que um meia-lagarta faz e com vantagens.

EE-T4 Ogum – Foto: Guilherme Poggio

Programas Ogum e granada shrapnel para o Iraque

Não sei como apareceu o programa do EE-T4 Ogum, mas de repente deveria se projetar aquele carro. Um carro que fosse semelhante ao alemão Wiesel.  O Wiesel foi projetado dentro de parâmetros claros e bem definidos. Deveria ser um veículo de reconhecimento das brigadas paraquedistas alemãs, caber exatamente no interior dos helicópteros HH-53 e possuir tração por lagartas. Aqui no Brasil vieram simplesmente com a informação de que os iraquianos queriam simplesmente um veículo de lagarta igual ao Wiessel e fizeram o projeto sem mais nem menos.

A turma da Engesa não era capaz de chegar e perguntar para o cliente quais eram as características do carro que eles queriam. Eles criaram a mentalidade de que não se podiam fazer perguntas. Por que se fazem perguntas, pode passar a impressão de que a gente não sabe. Para definir bem essa mentalidade, uma vez o meu gerente chamou-me e disse: ‘Bacchi tal país está pedindo a cotação do 162mm’. Eu respondi: ‘Ótimo. Eles querem o americano, o alemão, o …’ Eu falei uns seis ou sete países. ‘Faz o seguinte Bacchi, cota todos’, ele me respondeu. Ou seja, ele tinha medo de perguntar. Um verdadeiro pavor de perguntas.

Pensava-se que o Iraque queria. Mas deveria ter sido feita a pergunta: para que vocês querem esse carro? Quando vinha a delegação ver a demonstração do Ogun eles disseram: ‘desculpe, mas nós não vemos nenhuma utilidade neste carro’. Morreu o Ogun aí mesmo. Um bom projeto sem um propósito. Foi dinheiro jogado fora.

Teve também a história do shrapnel. Corria a história de que os iranianos atacavam os iraquianos em hordas. Então vinha aquele monte de soldado iraniano avançando. Então um determinado sujeito teve a ideia de equipar o Cascavel com uma granada anti-pessoal com feixe de radar. Assim, quando chegava próximo dos atacantes, o feixe de radar detectava a tropa e a granada explodiria na frente dele. Então o departamento de engenharia da Engesa foi projetar uma munição shrapnel, que parou de ser produzida por volta de 1918.

Eu era totalmente contra e fiquei com aquilo na cabeça e um dia não aguentei mais e liguei para a Phillips, fornecedora do radar que era utilizado em tiro antiaéreo, e perguntei qual era o menor ângulo do feixe. Me disseram algo como 10º. Pronto, morreu a história. Porque se o canhão dispara no máximo com uma altura de 7º e o feixe sai com no máximo 10º, ele vai detectar o solo logo de imediato e já faz a explosão da granada. Ou seja, precisaríamos de um feixe de um milésimo de grau para dar certo.

Um dos dois protótipos do EE-3 Jararaca 4×4 recebidos pelo Exército Brasileiro a partir da massa falida da Engesa, flagrado em agosto de 2008 em um evento da AFA – Foto: Nunão

As viaturas Sucuri e Jararaca

Eu fiz um artigo na Engesa tentando mostrar o que é o caça-tanques. Muita gente faz a idéia de que o caça-tanques ou “tank destroyer” é um veículo leve, blindado, veloz que sai destruindo tudo pela frente. Não é nada disso. O tank-destroyer é o que eu chamo de canhão autopropulsado anticarro. E na verdade não havia uma procura por aquilo. O Sucuri II foi criado porque a turma de vendas acreditava que se o Cascavel não tivesse uma munição flecha nós não conseguiríamos mais vendê-lo.

Então projetamos um carro que empregasse munição flecha, equipado com um canhão M68/L7 que é o mesmo usado pelo Leopard I entre outros. E assim surgiu o Sucuri II, que seria um possível substituto para o Cascavel e poderia ter sido o embrião de uma família nova de veículos. O projeto era excelente. Um dos melhores feito na Engesa. O problema do Sucuri foi que ele surgiu em uma fase em que os interesses da Engesa estavam todos voltados para o Osório. Faltou interesse em desenvolvê-lo.

EE-17 Sucuri I
EE-18 Sucuri II
EE-18 Sucuri II

Em tenho impressão que não havia procura. O tank-destroyer era aquele veículo que estava no fim. Hoje por exemplo, não se encontra mais. O único carro que eu conheci que poderia ser rival do Sucuri II era o Centauro italiano, um veículo projetado especificamente para complementar a função do exército italiano. Noventa por cento do exército italiano estava concentrado nos Alpes. A sua função principal, dentro do esquema da OTAN, era bloquear a passagem dos exércitos do Pacto de Varsóvia para o sul da Península italiana. O resto da península está completamente desarmando.

Eles [italianos] tiveram a idéia de criar quatro ou cinco brigadas de defesa do território italiano que receberam o nome de “Brigata corazzata”. Eram brigadas apoiadas principalmente por veículos sobre rodas cuja função era o rápido deslocamento em regiões onde houvesse o desembarque de uma força inimiga ao longo do litoral italiano. E esta era a função do Centauro, um tank-destroyer dentro de um determinado cenário. O projeto é função do que você quer dele. O que acontece muitas vezes é que a turma faz projetos e depois pergunta o que é que nós vamos fazer com ele.

O Jararaca não cabia nada dentro dele. Um desastre, mas chegou a vender para o Uruguai e para Chipre.

Clima de mistério na Engesa e o avião “tapete voador”

Lá na Engesa havia um clima de mistério e a turma adorava isso. Acontecia até quando a gente viajava. Por exemplo, quando a gente desembarcava no aeroporto de Londres Heathrow e passava pela alfândega os funcionários perguntavam o que a gente estava fazendo lá. E, para não dizer que eram funcionários da Engesa, alguns amigos meus diziam que tinham cultura de rosas e que tinham ido lá ver quais eram as rosas comuns do lugar.

Quando chegava a minha vez eu simplesmente dizia que trabalhava em uma fábrica de armamento no Brasil e tinha ido lá para conversar com outras fábricas de armamento da Inglaterra para ver o que poderia ser feito em conjunto. Recebia como resposta um “Seja bem-vindo”.

Foi criada uma verdadeira celeuma sobre esse assunto [do avião “tapete voador”}, em parte por alguns jornalistas de defesa da época que gostavam de dizer que a Engesa gostava de esbanjar dinheiro. Da forma como foi contada a história, por estas pessoas, dava a impressão que nós tínhamos um avião que era usado só para isso, guardado em um hangar secreto.

O “tapete voador” nada mais era do que um Boeing 707 versão cargueiro da Transbrasil. Houve  época em que a Engesa estava querendo expandir seus negócios. O presidente da Engesa fez um acordo com a Transbrasil para criar uma firma de transporte de carga aérea em geral. O Soler, aquele mesmo que projetou o Uirapuru, fez uns desenhos de uns módulos internos que transformavam este avião, quando necessário, numa aeronave VIP.

VBTP Guarani

O programa Guarani

O Guarani está [2012] atrasado porque o Exército Brasileiro não paga. O programa foi feito com uma empresa italiana. Tudo está definido no papel, mas o programa não deslancha. Estamos com quase com dois anos de atraso.

Eu sempre falei bem do Guarani e continuo achando isso do projeto. Quando saiu a história de que o veículo seria 6X6, houve muitas discussões em torno disso. Houve até que escrevesse que o 6X6 estava obsoleto. Por que fazer um 8×8 se é possível fazer um 6×6? É mais barato. Se estivermos falando de 1000 ou 2000 carros, a diferença e sensível. Para um exército como o nosso, que a turma anda com uma mão na frente e outra atrás, não faz sentido. Eu acompanho projetos de carros novos. Nos últimos dois ou três anos foram lançados vários projetos novos de carros 6×6. Então dizer que o 6×6 está morto é bobagem.

Em relação à altura do Guarani, se comparar com o correspondente 8×8 do exército italiano, a diferença de altura entre eles é enorme. Durante a LAAD 2011 fui falar com o diretor italiano do projeto sobre isso. O veículo anterior foi projetado para um cenário de guerra convencional onde a principal ameaça era o disparo direto de canhão e uma altura mais baixa garantia maior sobrevivência.

Hoje esse cenário já não é mais tão importante. As minas e os IED (Improvised Explosive Device) tornaram-se fatores muito mais importantes. O cenário mudou. Alturas maiores aumentam as chances de sobrevivência da tripulação frente a estas ameaças. Todos os VBTP modernos possuem 2,30m de altura ou mais, desconsiderando apetrechos como a torre, e alguns anos atrás não passavam de dois metros. O nosso Guarani está nessa faixa.

Quando o pessoal do EB levou o anteprojeto do Guarani para discutir com a IVECO, ele era mais baixo. Uma das recomendações dos italianos foi a elevação da altura do carro e ela foi aceita.

O Guarani está começando muito bem. A Engesa nunca teve uma família de veículos. A única coisa comum de produto desenvolvido pela Engesa no Urutu e no Cascavel é a (suspensão traseira) boomerang. Ao passo que o Guarani já está sendo projetado [desde o começo] como uma família, embora existam diferenças aceitáveis entre o VBTP e o Guarani canhão. A suspensão deverá ser igual, mas a estrutura pode mudar um pouco, principalmente na altura e na distância entre os eixos.

O futuro carro de combate brasileiro

Existem muitas perguntas que devem ser respondidas antes de ser projetar um carro de combate. Primeiro, há interesse em se desenvolver um carro de combate? O carro de combate como nós o conhecemos hoje tem futuro? O carro de combate hoje enfrenta uma série de incógnitas. E uma delas em minha opinião é a mais importante. Qual a é quantidade? Esse ponto é importantíssimo porque quantidade define preço. Fabricar cem carros custa uma coisa. Fabricar mil carros custa outra coisa.

O que acontece hoje no mundo é que os exércitos encolheram de uma maneira impressionante. Sabe quantos batalhões (ou regimentos como é conhecido no Brasil) tinha o Exército da Alemanha Ocidental há vinte anos? Sessenta e cinco. Hoje existem cinco na Alemanha unificada. Então eu me pergunto: o que se pode fazer de projeto novo nessa escala de produção?

Hoje [2012] o Brasil possui quatro regimentos de carro de combate (RCC) e a dotação total é de 50 carros [cada regimento], totalizando 200 carros. E também possuímos cinco regimentos de cavalaria blindada (RCB). Cada regimento tem dois esquadrões. Ou seja, metade de um RCC. Então, cada dois RCB corresponde a um RCC. Sendo assim, o Brasil tem a necessidade de 325 carros.

Isto é suficiente para projetar um carro de combate novo? Esta é a primeira pergunta que deve ser feita. Poderíamos projetar o carro junto com outro país, como a Argentina. Isto permitiria eventualmente dobrar esta quantidade. Compensa fazer isso? Aí entramos em um segundo problema. Como definir o carro? Outra coisa. Como lidar com um país que não sabe quanto vai ter de dinheiro no ano que vem?

As compras de carros de combate Leopard pelo Brasil

Aqueles primeiros Leopard I belgas eram um desastre. Uma bola fora tremenda. Já a compra dos duzentos Leopard IA5 nós acertamos 100%. Em minha opinião o erro foi não ter comprado mais. Pelo menos uns 300 ou 400. Infelizmente eu acredito que eles já venderam tudo. A grande maioria dos IA5, acho que 90% deles, são veículos com quase zero km. Todos os Leo IA5 são carros adaptados e isto aconteceu quando começou a grande redução do Exército Alemão. Muitos desses carros foram reformados e guardados.

Faz meses que o EB está se virando para saber o que fazer porque descobriram que compraram poucos IA5. O que acontece hoje: existem quatro RCC que estão perfeitos com 50 Leo IA5 cada um. Já os cinco regimentos de cavalaria blindado estão uma bagunça porque não há Leo IA1 suficiente para equipá-los.

Então alguns regimentos possuem Leo IA1. Um regimento completo conta com M60 e dois regimentos, ao invés de terem dois esquadrões, estão com um esquadrão apenas. Uma solução que eu vejo seria a compra de mais M60 estocados nos EUA. Não é um carro que me agrada. São muito pesados. Mas o Exército gosta deles, além de possuírem manutenção mais simples que os Leopards.

O futuro da infantaria

Eu acho que a tendência vai ser a seguinte: infantaria mecanizada, infantaria leve e forças especiais. As forças especiais terão cada vez mais influência. Os grandes desenvolvimentos serão forças especiais e infantaria mecanizada. Não vejo infantaria que não seja mecanizada, a não ser aquelas com funções específicas. O grosso da infantaria como nós conhecíamos vai acabar e virar mecanizada. Nesse ponto o Exército Brasileiro está no caminho certo.

FONTE: Revista Forças de Defesa

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DOUGLAS TARGINO
DOUGLAS TARGINO
6 anos atrás

Me dói o coração em saber que hoje poderíamos ter nosso próprio blindado pesado, fabricando, vendendo, sendo uma potência nessa área e possivelmente com bem mais blindados pesados do que temos hoje. Não sei o que acontece no Brasil, que tudo que acontece aqui, cai por água abaixo ;/

Ronaldo de souza gonçalves
Ronaldo de souza gonçalves
6 anos atrás

Pesar o Brasil perdi um notável,que longe dos holofotes fez coisas supreendentes,mas esse sr foi pouco aproveitado peloEB.poderia ser até um conselheiro do Ministro da defesa.Mas onfelismente no Brasil só escolhem Ministro de defesa que não conhecem nada de defesa,e esses Ministro tem que consultar o gogle,e ler o poder aéreo,naval,e terrestre,e e cercado de adidos militares pois se forem falar de improviso não sai nada.

Gonçalo Jr.
Gonçalo Jr.
6 anos atrás

Mais uma vez meus parabéns ao blog. Excelente! Sempre nos trazendo matérias narradas por quem entende do assunto. Vocês são, definitivamente, os melhores.

Impressionante o que o engenheiro Bachi disse sobre a ENGESA. No final das contas o Osório foi apenas a pá de cal na empresa pelo que foi narrado.

Gonçalo Jr.
Gonçalo Jr.
6 anos atrás

DOUGLAS TARGINO 1 de Março de 2018 at 14:44
Se leu texto o engenheiro Bachi deixou bem claro que, pelas quantidades de regimentos que temos no país não compensa projetar e fabricar aqui um blindado nem mesmo médio. 325 blindados sairão caríssimos.

A sugestão dele de se associar a Argentina para fabricar o dobro disso não seria exequível pelo simples motivo que a Argentina deixou as suas forças armadas jogadas à traças.

Por este motivo no final das contas o EB vai mesmo de Leopard 2A4 visando substituir os 1A5. Isso já foi até matéria aqui no ForTe.

http://www.forte.jor.br/2018/01/25/eb-avalia-no-futuro-evoluir-do-leopard-1a5-para-o-2a4/

Marcos
Marcos
6 anos atrás

Se o Osório tivesse sido fabricado eu creio que hoje teríamos um nicho muito confortável para vende-lo.

Começando pela América Latina. Nós venderíamos para quase todos os países da América Latina.

Imaginem as diversas versões do Osório, sempre melhorando e melhorando.

Osório O-1, O-2, O-3, O-4 igual os Leopards.

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
6 anos atrás

Marcos, quase todos os países da América Latina NÂO usam um MBT fabricado depois da década de 80.
O Osório era caro e nem o EB quis comprar. Poderia até vender algumas unidades, desde que fosse mais barato que os concorrentes alemães e russos, mas jamais seria esse sucesso todo.

Eduardo
Eduardo
6 anos atrás

Toda vez que se fala em Engesa vem essa ladainha do Osório…. no meu vero Osório só mostra que o brasileiro é perfeitamente capaz de coisas extraordinárias, mas como MBT em si pouco representa, pois nunca passou de um protótipo. Não foi comprado porque o Arábia Saudita viu o óbvio, era um projeto e não um MBT pronto, e de um país que não tem nenhuma tradição na fabricação desse tipo de carro de combate. E mais, era uma colcha de retalhos feito com peças de vários países diferentes… se algum desses países decidisse embargar a venda da peça já… Read more »

Wilson Silva Jr
Wilson Silva Jr
6 anos atrás

Perfeito Eduardo.
Era uma empresa com bons produtos que ganhou muito dinheiro e investiu errado em várias frentes.
Um pouco de caldo de galinha na época e ainda estaria ai firme e forte hoje.
Bons projetos no início e megalomania na hora de se consolidar no mercado.

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
6 anos atrás

Galante, dinheiro havia, mas o EB preferiu investir em outras coisas, como, por exemplo, montar sua Aviação. Questão de prioridades, estando elas corretas ou não.

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
6 anos atrás

Galante, foram comprados os Esquilos e os Panteras nessa mesma época. Acho melhor não começar uma discussão sobre o tamanho do orçamento e como o EB o gasta, pois temos opiniões bem diferentes.
Eu só quis apontar que havia alguns milhões para investimento, mas o EB preferiu investir em helicópteros. Mas, é claro, que não tínhamos e não temos um orçamento militar igual ao dos EUA.

M.Silva
M.Silva
6 anos atrás

Ótima reportagem!

Como sempre, a comunicação falhando neste país. Ninguém pergunta, ninguém responde, todo mundo tenta adivinhar…

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
6 anos atrás

Ademais, o EB, à época, preferia investir no Tamoyo, da Bernardini.

Chico Novato
Chico Novato
6 anos atrás

Esse senhor merece uma biografia. Que bela história de serviços prestados a sua comunidade. Meus sentimentos aos amigos e familiares.

Quanto à Engesa, em muitas partes do relato, fiquei com a impressão de que era uma empresa desorganizada e perdulária. Saia projetando e fabricando protótipos com pouco ou nenhum embasamento mercadológico. Essa parte do “medo de perguntar” soa como absurda aos olhos de hoje.

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
6 anos atrás

Algumas opiniões interessantes do Bacchi sobre produtos da Engesa, que eu consegui arrancar (com a ajuda do Bardini): . Rafael Oliveira 1 de dezembro de 2016 at 14:48 Caro Reginaldo Bacchi, na sua opinião, qual foi o pior projeto da Engesa: o Jararaca, o Ogun ou algum outro? . Reginaldo Jose da Silva Bacchi 1 de dezembro de 2016 at 15:28 O Ogum foi um excelente projeto, realizado em menos de 5 meses. Trabalho digno de se tirar o chapeu!!! O Jararaca ganha longe como o pior projeto da ENGESA! O engenheiro Schiesser brincava, dizendo que o Jararaca tinha sido… Read more »

Sequim
Sequim
6 anos atrás

O que acho incrível é ver como o Bachi enxergava longe. Visão estratégica pura. O Ministério da Defesa deveria contratar pessoas assim como assessores, para se tomar decisões sensatas, ainda mais quando se tem pouco dinheiro. No mais, quero expressar minhas condolências à família. Que descanse em paz. Fará muita falta.

Rodrigo Ferreira
Rodrigo Ferreira
6 anos atrás

Nos (des)Governos do PT o MD virou um antro de “cumpañeros”

Control
6 anos atrás

Srs Meus pêsames a família do Reginaldo Bacchi e também ao Brasil. Perdemos um dos últimos engenheiros dignos de uma época em que pensávamos e realizávamos coisas como se fossemos um país normal, capaz de estar entre as grandes nações. Hoje, os poucos profissionais daquela época, são chamados de dinossauros, criaturas em extinção e, para alguns, a serem definitivamente extintas, pois não há mais lugar para elas neste país. Portanto, a perda do Bacchi é triste para nós, mas creio que ele foi para um lugar melhor e se viu livre de compartilhar de nossa decadência. Quanto aos comentários sobre… Read more »

Cadu
Cadu
6 anos atrás

No meu ver, o maior erro do exército foi de não investir no Tamoio. Para o futuro, é buscar nossos vizinhos, Argentina, Paraguai, Peru e Colômbia. Para desenvolver um tanque em conjunto, construindo pela KTM aqui no Brasil. E provavel que bancariamos a maior parte do projeto, mas acho que pode valer a pena. Uma observação, acho que as Forças Armadas estão perdendo a chance de ouro de colocar o governo no bolso. O Temer, é fraco, e depende do exército para a intervenção RJ, talvez essa seria a chance de cobrar um dinheiro do tesouro para compra de equipamentos.… Read more »

Robsonmkt
6 anos atrás

Infelizmente, o Tamoyo e o Osório, assim como o AMX coincidiram com a crise econômica dos anos 80 e 90, as chamadas décadas perdidas, onde chegamos ater hiperinflação de 80% ao mês. Era uma tragédia anunciada. A inflação e a dívida externa já estavam fora de controle nos governos Geisel e Figueiredo (nesta época foi cunhada a expressão “inflação galopante”) e os militares, espertamente, passaram o poder aos civis pouco antes da economia implodir de vês, o que aconteceu no colo do governo Sarney. Com a crise instalada, os governos civis simplesmente não tinham dinheiro para tocar nada, muito menos… Read more »

Henrique
Henrique
6 anos atrás

Bela reportagem, obrigado! O interessante é observar a falta de estratégia tanto da Engesa como do próprio governo brasileiro (digo todos os governos) em não estabelecer prioridades e investimento naquilo que daria retorno e não em tentativas perigosas. Me impressiona a narrativa que “não se perguntava o que o cliente queria de fato” e isso nos termos profissionais é suicídio. A massa falida da Engesa poderia ter sido absorvida em caráter temporário (que seja) pelo Governo/EB para manutenção dos projetos de sucesso como Cascavel e Urutu mas novamente, num país que não se tem estratégia de estado e se mantém… Read more »

Control
6 anos atrás

Srs Para esclarecer e por as informações numa razoável ordem cronológica: Jovem Robsonmkt A inflação galopante foi no período dos gatilhos salariais e do overnight , ou seja, mais para o final da década de 80. A inflação, no período do governo Geisel e início do governo Figueiredo era alta mas fichinha perto das do final dos 80 e início dos 90 (coisa da anual se menor que a de um mês). Quanto as razões do porque caímos da década perdida e nossa indústria de defesa se acabar: O Brasil vinha, desde 1967 com crescimentos de dois dígitos, mais do… Read more »

Robsonmkt
6 anos atrás

Prezado Control,

excelente resumo do que foi aquele período. O fim de guerras e esfriamento das tenções levaram ao fim de encomendas externas e a crise interna impedia novas encomendas internas, levando nossa indústria ao colapso.
Outra coisa: obrigado pelo jovem, embora não mereça, kkkk. Desde a minha adolescência em 1985 acompanho nossas FA’s e a indśutria de defesa nacional em revistas especializadas e hoje, com 47 anos, continuo firme nesta jornada!

Delfim
Delfim
6 anos atrás

“Então o meia-lagarta era uma solução quebra-galho. Tanto que o Exército Americano como o Exército Alemão utilizaram em profusão. Mas hoje eu não vejo o menor sentido. Para mim o meia-lagarta morreu. Acabou.”
Acho que os israelis discordam, mantém milhares de half-track na reserva.
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Além de engenheiro, com tino comercial : sabia discernir projeto viável de produto vendável. Deveria ter sido Presidente da Engesa.
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Leos 2A4 turcos passando vergonha na Síria. Palhacinho pulando da caixa…

Douglas Melo
Douglas Melo
6 anos atrás

Aprendi muito com Bacchi ! Infelizmente ele nos deixou ! Rip