‘Potências não estão fazendo seu papel diante da crise síria’, diz Antonio Patriota

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Chanceler brasileiro critica falta de consenso na ONU e ações unilaterais

 

Lisandra Paraguassu e Roberto Simon / O Estado de S. Paulo

A paralisia do Conselho de Segurança das Nações Unidas diante da crise síria passou dos limites até mesmo para o sempre moderado – ou, segundo os críticos, passivo – governo brasileiro. O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, concorda que passou da hora de agir e afirma que, se o conselho conseguir chegar a um consenso que inclua a ameaça explícita de sanções, o Brasil apoiará a decisão. “Acho que há uma clara situação em que o Conselho de Segurança não está desempenhando satisfatoriamente seu papel”, afirmou o chanceler. Nas últimas semanas, o Itamaraty tem feito contatos com pessoas ligadas aos rebeldes sírios. “Recolhemos elementos de análise e também sobre o que estão pensando personagens da oposição síria”, afirmou Patriota. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida na sexta-feira ao Estado.

A ONU reconhece a o direito de intervenção externa quando há ameaças de violência em larga escala contra civis em um Estado. A Síria já não foi além desse ponto?
Há uma clara situação em que o Conselho de Segurança não está desempenhando satisfatoriamente seu papel. Eu concordo com isso. Tanto que o debate foi levado à Assembleia-Geral da ONU e foram adotadas duas resoluções. A resolução que designa um enviado especial foi da Assembleia-Geral. Idealmente, deveria ser do Conselho de Segurança. Então, sim, é legítimo criticar a inação do Conselho de Segurança e a polarização entre os membros permanentes. Houve um momento positivo, que despertou uma expectativa de que as Nações Unidas conseguiriam desenvolver uma estratégia, que foi a convocação do grupo de ação de Genebra pelo (ex-mediador da ONU e da Liga Árabe) Kofi Annan. Ali foi adotado um documento por consenso, apoiado por russos, chineses, americanos e europeus. Foi elaborado um tipo de estratégia e um programa de ação mais ou menos em torno dos seis pontos do plano de Annan. Mas, quando se tratou de homologar esse plano no Conselho de Segurança, mais uma vez as divisões tornaram impossível a adoção de uma resolução. Isso nos faz meditar sobre o funcionamento do multilateralismo e uma das conclusões inevitáveis é que se torna cada vez mais necessário e urgente uma reforma no Conselho de Segurança, para ampliá-lo e também para mudar seus métodos de trabalho.

Mas, objetivamente, o Brasil é favorável a uma resolução do Conselho com base no Capítulo 7, que contempla o uso de sanções e eventualmente da força? Não seria o caso de envolver o Tribunal Penal Internacional (TPI) na crise síria? Não chegamos a esse ponto?
O Brasil é favorável a tudo que leve ao fim da violência e ao desenvolvimento de uma estratégia diplomática que repercuta de forma favorável para a população síria e para o futuro da Síria. Agora, o Brasil também é favorável a estratégias que fortaleçam o multilateralismo. Então, se o Conselho de Segurança deliberar, chegar a um consenso e levar adiante uma resolução, inclusive com referência ao Capítulo 7, que permita desenvolver uma estratégia desse tipo, não seremos contra. O que nos parece que não contribui para pacificar a Síria, nem para fortalecer o multilateralismo, são ações individuais, à margem do direito internacional.

No caso da França, por exemplo, que agora está apoiando abertamente alguns grupos de oposição síria com recursos logísticos e financeiros, o sr. avalia que essa é uma interferência indevida?
A posição do Brasil, de maneira geral, é que só devem ser levadas adiante estratégias coordenadas multilateralmente, especialmente em casos de uso de força. Porque é isso que diz a Carta das Nações Unidas. Quando se trata da coerção, a ação militar só é justificada em legítima defesa ou quando autorizada pelo Conselho de Segurança. Então, medidas que são tomadas à margem de um debate multilateral são um complicador. Eu sei que Annan e agora o seu substituto, Lakhdar Brahimi, veem como problemáticas essas intervenções, incluindo a venda de armas por parte de outros países.

Aqui na América Latina, a Venezuela acabou de denunciar o protocolo de San José e deve deixar a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA. O sr. acha que há uma fragilização do sistema de proteção dos direitos humanos nas Américas?
O sistema interamericano está passando por um momento de reflexão interna que o Brasil contribuiu para lançar. Desde o ano passado foi adotada uma resolução na Assembleia-Geral da OEA em El Salvador que determinou uma análise do sistema em seu conjunto, suas possíveis deficiências e falhas, para torná-lo mais satisfatório. Isso prosseguiu na assembleia de Cochabamba (Bolívia, em junho). A verdade é que há um nível razoavelmente disseminado de insatisfação com o funcionamento do sistema e isso se verifica em países de tipos muito diversos da região. As propostas visam tornar mais previsível e mais legítimo o sistema, deixando menos arbitrariedade aos membros da comissão e mais claras as atribuições da comissão e da corte.

O Brasil também compartilha essa insatisfação?
Sim, não há a menor dúvida. O Brasil ficou muito insatisfeito com a maneira como foi tratada a questão da hidrelétrica de Belo Monte, para dar um exemplo. Mas a Colômbia tem insatisfações, o Peru e a Venezuela, também. A saída da Corte Interamericana é uma decisão soberana da Venezuela e sobre isso não tenho comentários mais específicos a fazer. Mas posso dizer que o grau de insatisfação é manifesto e em função disso está sendo feita essa revisão, com vistas a fortalecer o sistema.

O sr. acredita que a proposta do Equador, de se criar um Conselho de Direitos Humanos da América Latina, fora da OEA, tem condições de prosperar?
A nossa região tem conhecido uma certa efervescência de fóruns regionais e sub-regionais, que vão desde a Unasul (União das Nações Sul-americanas) até a Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos), criada mais recentemente, em dezembro do ano passado. Nesse contexto podem conviver diferentes mecanismos e instâncias. Na Unasul nós examinamos, por exemplo, o combate internacional às drogas, mas isso não significa que não possa haver também um esforço no âmbito da OEA ou das Nações Unidas. Eu acho que essas e outras iniciativas podem se fortalecer mutuamente.

O estado da democracia na Venezuela, agora que Caracas passou a fazer parte do Mercosul, preocupa o Brasil?
Acho que devemos partir do princípio que vivemos numa das regiões mais democráticas do mundo. A América do Sul se distingue entre as regiões do mundo em desenvolvimento por ser integrada por países onde todos os governos são democraticamente eleitos, onde todos os governos tentam lidar com a desigualdade social, a exclusão social e a exclusão dos processos políticos. Onde existe cooperação e onde agora, com a perspectiva que o último foco de conflito armado, na Colômbia, dê lugar a um acordo de paz. Isso é importante em si mesmo. Mas também devemos reconhecer que a democracia é imperfeita em todos os lugares do mundo. Você poderá aperfeiçoar a democracia em todos os lugares do mundo e é necessário haver vigilância para não termos derrapagens.

Mas o caso da Venezuela não chama a atenção?
Há sociedades que são mais polarizadas que outras. O Brasil, comparativamente, é uma sociedade onde o espectro político é pouco polarizado, até mesmo na comparação com os Estados Unidos. Em outros países da nossa região existe muita polarização, em função de evoluções históricas específicas. Na Venezuela a gente não pode esquecer o que aconteceu em 2002. A oposição venezuelana mostrou ser pouco democrática ao tentar um golpe de Estado contra um presidente democraticamente eleito, Hugo Chávez. Isso levou a uma série de iniciativas, dos amigos da Venezuela, etc. Hoje temos a Unasul, na qual foi criado um conselho de acompanhamento eleitoral. Serão designados observadores eleitorais para essa próxima eleição na Venezuela, no começo de outubro. E nossa expectativa é que a disputa eleitoral ocorra de maneira transparente e com credibilidade.

Depois da suspensão do Paraguai do Mercosul, fala-se muito na imprensa local na ‘morte do Mercosul’ como bloco comercial. Mesmo no Brasil essas análises aparecem com frequência. Como o senhor responde a essas críticas?
Considero que é uma crítica sem fundamento na realidade. Até mesmo porque o próprio presidente do Paraguai, Federico Franco, tem dito que valoriza muito a relação com Argentina e Brasil e a relação com os dois países se desenvolve no Mercosul. Não tem porque voltar atrás. Vamos estabelecer tarifas de novo? Seria um retrocesso. Isso não é do interesse regional. Acho que a gente tem de distinguir muito entre manifestações que tenham, talvez, um objetivo retórico imediato e a realidade. A realidade é que nós temos constatado manifestações moderadas, tanto do presidente Franco quanto do chanceler em exercício, José Félix Estigarribia, pela expectativa de que no ano que vem as coisas se normalizem.

FONTE: O Estado de São Paulo

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