Denis Lerrer Rosenfield

ClippingO discurso da diplomacia brasileira sobre a Venezuela e os países bolivarianos segue a doutrina do PT, segundo a qual estaríamos diante de uma democracia, pelo simples fato de lá haver eleições. Eleições seriam, então, o único critério de definição de estados democráticos, com evidente desprezo para com as instituições da sociedade civil. Mais concretamente, há total desconsideração para com o equilíbrio de poderes e a independência dos poderes Judiciário e Legislativo. A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral é sistematicamente pisoteada, senão aniquilada.

Neste sentido, a “democracia” poderia prescindir das liberdades civis e políticas, devendo se contentar com eleições e referendos, cada vez mais restritos, pois as condições de competitividade são progressivamente reduzidas. De fato, a democracia representativa, nesses países “socialistas”, é substituída, para retomar um conceito de J. L. Talmon, pela democracia totalitária.

A democracia representativa caracteriza-se por ser constitucional, obedecendo a princípios que fogem a qualquer deliberação popular. Consequentemente, não pode ser objeto de deliberação a igualdade de gêneros ou de raças. Uma maioria popular machista ou racista não poderia se impor em uma democracia representativa, graças aos limites constitucionais, de princípios e valores, por ela assegurados.

Segundo a democracia totalitária, o poder reside na vontade popular encarnada pelo líder carismático. Não possui ele, em virtude de sua delegação popular, nenhuma limitação, como se eleições lhe autorizassem, virtualmente, a fazer qualquer coisa. Basta um referendo para que tal ocorra. Foi o que aconteceu com o “socialismo do século XXI”, nas figuras de Chávez e de sua caricatura Maduro, que aboliram a separação de poderes, emascularam o Judiciário e o Legislativo, fazendo do Executivo o único poder que conta.

A economia de mercado, por sua vez, foi cerceada quando não aniquilada, tendo como consequência o domínio do Estado, cujos efeitos mais nítidos são a inflação galopante e a falta de produtos básicos, sendo o papel higiênico o mais emblemático deles.

A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral foi sendo suprimida, sobrando, hoje, o resquício de uma sociedade livre. Milícias no melhor estilo das SS nazistas aterrorizam a população, fazendo uso da violência e do assassinato sempre e quando o líder máximo o exigir. Tudo, evidentemente, em nome da “revolução” e do “socialismo”.

Não obstante, o Itamaraty e setores do PT continuam justificando a “democracia venezuelana”, como se os protestos do que resta de oposição fossem o real perigo. As posições estão totalmente invertidas. A dita “cláusula democrática”, bem entendida, significaria, apenas, a “cláusula democrática totalitária”.

Do ponto de vista diplomático, por uma questão de pudor, não se pode acatar o argumento de que o país não se imiscui nos assuntos de outros países, uma vez que foi bem isto que o Brasil fez no Paraguai. O então presidente Lugo foi afastado do poder por um impeachment, segundo a legislação daquele país. O governo brasileiro não reconheceu o impeachment e aproveitou a ocasião para suspender esse país do Mercosul, viabilizando, desta maneira, a entrada da Venezuela. É evidente o uso de dois pesos e duas medidas.

Nesta perspectiva, poderíamos aplicar os mesmos critérios para o que se denominou chamar de “ditadura” militar brasileira, com o intuito de melhor apreciarmos a “verdade” do período, contrastada com o juízo “democrático” do governo a propósito do “socialismo do século XXI”.

Considera-se a ditadura militar como se estendendo desde o governo Castello Branco até o fim do governo Figueiredo, quando há diferenças significativas neste longo período. O governo Castello Branco, por exemplo, tinha uma inclinação liberal, enquanto o governo Geisel foi fortemente estatizante.

Segundo esse critério, o governo Dilma se encaixaria na concepção geiselista, com forte intervenção do Estado na economia, a escolha de empresas e setores privilegiados a serem apoiados e o uso da política fiscal e de subsídios para o apoio a esses grupos. Seria Geisel de esquerda conforme essa concepção? Mais ou menos democrático? E Lula, em seu primeiro mandato, seria castellista?

Durante o período do governo Castello Branco (1964 a 1967) até o Ato Institucional nº5, promulgado por Costa e Silva, em dezembro de 1968, o país gozava de ampla liberdade. Foi esse ato extinto em 1978, por Geisel, e o habeas corpus, restaurado. Penso não ser atrevido dizer que as liberdades civis eram muito mais respeitadas do que o são nos países que, atualmente, encarnam o “socialismo do século XXI”.

A gozação, para não dizer a sátira e a ironia do “Pasquim”, começou em 1969, quando o regime militar tinha endurecido e a ditadura propriamente dita se estabeleceu. Isto é, a ditadura tolerou o “Pasquim”, enquanto os governos bolivarianos não toleram qualquer crítica, muito menos aquela que se faz através da sátira que atinge os seus líderes.

A greve do ABC, sob liderança de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, foi um marco no Brasil, abrindo efetivamente caminho para a liberdade de participação sindical. Ocorreu em 1974, sob o governo Geisel. A partir dela novas greves se estenderam de 1978 e 1980, já no governo Figueiredo. Imaginem algo semelhante nos países bolivarianos! Por muito menos, os “socialistas” enviam as suas milícias e fazem uso de perseguições, assassinato, prisões e tortura.

A Lei da Anistia, negociada entre militares democratas, políticos do establishment e a oposição do MDB, com amplo apoio da sociedade civil, foi assinada por Figueiredo, em agosto de 1979, abrindo realmente caminho para a redemocratização do país. São os próprios militares que tomaram a iniciativa de abandonar o poder.
Sem dúvida a “democracia” bolivariana consegue ser mais dura do que a ditadura brasileira nesses períodos!

FONTE: O Globo

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Blackhawk
Blackhawk
10 anos atrás

Parei de ler em “Penso não ser atrevido dizer que as liberdades civis eram muito mais respeitadas…”

Mentira, li tudo, mas achei medíocre o texto quando começou a fazer o paralelo de Dilma/Geisel, Lula/Castello Branco.

Antonio M
Antonio M
10 anos atrás

Não vejo exatamente mediocridade, mas o problema nas ditaduras é o problema da corrupção e de abusos que grupos comentem en nome de estarem defendendo “algo maior” e mesmo assim, os maiores reclamantes eram artistas e políticos que queriam mais “participação” no sistema. E vendo o tratamento que esses “ex-rebeldes libertários” agora no poder deram às manifestações, isso sim é no mínimo contraditório mas, vendo a história, os regimes de direita além de cometer abusos também foram os que anistiaram, perdoaram, reabilitaram etc e no caso do Brasil devolvendo o poder aos civis enquanto que os regimes da tal esquerda… Read more »

Blackhawk
Blackhawk
10 anos atrás

Antonio M, uma ditadura para mim, sendo de direita ou esquerda é a mesma coisa. Não faço distinção entre goulags/fuzilamentos/torturas/sumiços.

Antonio M
Antonio M
10 anos atrás

Nas atuais, por causa da dissimulação, contradições e hipocrisia, as de esquerda estão piores.

Blackhawk
Blackhawk
10 anos atrás

Acho que possa ser essa a tua impressão, porque não temos ditaduras de direita atualmente. Então fica difícil fazer a comparação.

Antonio M
Antonio M
10 anos atrás

O problema maior é distinguir o que é direita e esquerda, conceitos amplamente distorcidos atualmente.

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
10 anos atrás

O autor comete o erro grotesco, bem comum, por sinal, de julgar o mundo como “direta” ou “esquerda”, sem separar questões econômicas de questões políticas e de questões sociais (costumes, liberdades). Seria mais útil analisar isso assim (ainda que seja uma simplificação e que existam vários “graus” dentro desses conceitos): Economia: Liberalismo econômico/Estatismo Politica: Totalitarismo/Democracia Questões sociais e de costumes: Libertário/Conservador Ainda que não seja uma classificação completa e que seja limitada (já que um governo pode tomar posições estatistas em alguns casos, e liberais, em outros, por exemplo), ela é muito melhor do que dizer que um governo é… Read more »

Antonio M
Antonio M
10 anos atrás

Ao menos a ditadura militar largou o osso qdo o desgaste era irreversível, o governo do PT não está exatamente com a essa “boa vontade” em largar o osso e é democrático até a segunda página, se pudessem já teriam colocado a mordaça em muita gente . E ainda estão tentando.

Rafael Oliveira
Rafael Oliveira
10 anos atrás

Confesso que não tenho como contestar a afirmação ” ditadura militar largou o osso quando o desgaste era irreversível”. Será que não era antes? Fora que, para mim, nunca deveria ter agarrado o osso. Se fosse o caso que apoiassem a tirada de Jango do poder se ele sofresse, legalmente, um impeachment ou efetivamente desse um golpe de estado. Quanto ao PT não largar o osso, nós podemos tirá-los do poder nas urnas. Eu já tentei tirar duas vezes, no governo federal, e ajudo a manter ele fora do estadual (SP). Na época da ditadura militar, isso não era possível.… Read more »

Antonio M
Antonio M
10 anos atrás

Por isso que não acho o PT menos pior, são ruins mesmo.

E os militares ao estender demais no poder sim, foi um erro ainda com o descuido com a educação pública que hoje se faz sentir.

Renato.B
Renato.B
10 anos atrás

Concordo com o Blackhawk e o Rafael. Eu achei a comparação Lula/Castello e Dilma/Geisel bem simplista também, não dá para se simplificar o mundo assim sem se perder alguma coisa importante. Fica como uma foto fora de foco. E por mais que não se goste do governo de plantão a situação é bem diferente por aqui hoje em dia. O governo fracassou em diversas inciativas de controle, como o controle da mídia, e sofreu fogo pesado que só um sistema democrático permite (que precisa de melhorias, admito) . Afinal alguém achava que a Dilma era a candidata preferida do PT… Read more »

Colombelli
Colombelli
10 anos atrás

Nada é pior que o governo do PT que se faz, mas só se faz de democrático, enquanto tenta aparelhar e controlar a mídia, e aparelhar toda sociedade, a mantendo uma massa de cativos do assistencialismo e comprando o congresso com CC. O que eles tentam é implantar uma ditadura velada. Gramscismo puro e a velha cartilha do partidão em operação. E comparar lula e dilma ( marionete dele) com qualquer presidente do regime militar realmente não é correto, a começar pelo fato de que nenhum deles deixou o governo rico ou com familiares ricos, nem tampouco foram incoerentes e… Read more »

Antonio M
Antonio M
10 anos atrás

E ainda, são óbvios os erros dos militares mas, vamos falar mais um pouco de alguns “erros” desse tal governo democrático : . O caso do caseiro que teve seu sigilo bancário quebrado com um mero pedido de um político envolvido na falcatrua e que mesmo assim participou duas vezes desse governo antes e depois desse escândalo onde ele e demais envolvidos ainda se elegem e circulam livres por aí? E a lista não é pequena. E que país decente deixaria um ato desses passar impune? Só em ditaduras mas, nem na nossa ditadura militar ocorreu algo desse porte. .… Read more »

Renato.B
Renato.B
10 anos atrás

Não nego que nosso sistema ainda tenho muitos problemas, especialmente nos freios e contrapesos entre os poderes que ainda são fracos. O executivo brasileiro é poderoso demais. Mas ainda assim nosso freios e contrapesos fracos são melhores que coisa nenhuma. Por isso acho que estamos atrás do ocidente no hemisfério norte mas muito à frente de Síria, Venezuela, Egito e Ucrânia. Não estou querendo ser condescendente, só mostrando o ponto em que estamos. Se o governo de plantão é ruim e não pode ficar pior? Imagine se ele tivesse um AI-5 na manga. Nenhum presidente pode ter algo como aquilo.… Read more »

Renato.B
Renato.B
10 anos atrás

Enfim, como dizia James Madison:

“You must first enable the government to control the governed; and in the next place oblige it to control itself.”

“Primeiro, você deve habilitar o governo a controlar os governados, e depois obrigá-lo a controlar a si mesmo.”

O que só comprova que o sistema é tudo menos fácil. Ainda temos uma loonga caminhada.

Renato.B
Renato.B
10 anos atrás

Enfim, como dizia James Madison:

“You must first enable the government to control the governed; and in the next place oblige it to control itself.”

“Primeiro, você deve habilitar o governo a controlar os governados, e depois obrigá-lo a controlar a si mesmo.”

O que só comprova que o sistema é tudo menos fácil e ainda temos uma loonga caminhada.