Hussein Ali Kalout

A situação na Síria vai de mal a pior. As forças rebeldes não conseguem avançar na deposição do regime Assad que, por sua vez, dá sinais claros de que não abandonará o poder facilmente. O limite da fratura alcançou uma profusão étnico-religiosa que não será fácil de dissolver.

O país está dividido em duas partes desiguais. Uma delas prefere ordem e estabilidade, enquanto a outra quer liberdade e democracia. O lado governamental tem o apoio da elite econômica, das minorias religiosas e de seu indivisível exército. Já a parte oposicionista comporta um conselho de transição carente de legitimidade, milícias extremistas e desordenadas, além dos frágeis movimentos civis pró-democracia.

O problema sírio, entretanto, vai muito além do confronto interno. A situação do país se inserta numa lógica geopolítica mais complexa do que aparenta ser. A Síria é um ator vital no Oriente Médio, pois é aliada do Irã, exerce influência sobre a política libanesa, concentra a maior população de refugiados palestinos no mundo árabe e possui fortes conexões com os movimentos armados Hezbolah, no Líbano, e Hamas, na Faixa de Gaza,  –  ambos inimigos declarados de Israel.

A Síria é a chave da solução de vários problemas regionais. Por isso, o conflito no país passa por complexa equação multidimensional que abarca interesses difusos de atores triviais na balança de poder na região, como Rússia, EUA, Israel, Irã, Turquia, Arábia Saudita e velhas potências europeias.

Damasco é peça fundamental para a estratégia geopolítica da Rússia. A Síria é o último bastião que os russos conseguiram preservar no mundo árabe, e Moscou não pretende abdicar de exercer o seu domínio sobre o país. Rechaçar o intervencionismo euro-americano no conflito sírio é crucial para manter o tênue equilíbrio no Oriente Médio.

Para deter a hegemonia dos EUA, bem como barrar o neoprotagonismo francês e britânico na região, Moscou não hesitará em resguardar a Síria a qualquer preço, tal como os americanos fazem com Israel. Por isso a Rússia segue dando fôlego ao governo Assad, para liquidar com as forças opositoras.

Aos EUA não interessam, por ora, confrontações diretas com Moscou. A intervenção em zona de influência russa representaria um estrangulamento diplomático entre as duas potências. O desejo americano pela queda do regime é limitado. Pois a saída de Assad poderia ter múltiplos efeitos negativos para os interesses de Washington – que não pode assumir isso publicamente.

Apesar da retórica e das condenações políticas ao establishment sírio, o governo Obama segue hesitante em armar a oposição. A chegada ao poder de um governo incógnito, armado e de tendências religiosas extremistas e hostis a Israel seria o pior dos cenários. Já os israelenses temem, ainda, uma postura mais eloquente quanto à exigência pela devolução das Colinas de Golã. A manutenção do status quo e o arrefecimento das pressões seguem sendo a política externa israelense nos bastidores da diplomacia.

Por seu lado, a estabilidade do governo Assad é vital para a estratégia iraniana de consolidação política no Oriente Médio. O corredor xiita já formado entre Teerã e Bagdá não se estenderia ao Líbano sem Damasco. Por isso, o Irã segue apostando no fortalecimento do governo de Assad e na construção de alianças leais na região para evitar o seu isolamento.

Para a Turquia, a questão Síria seria oportunidade estratégica para reerguer a influência otomana no leste do mediterrâneo. A diplomacia turca já tem atuado na esfera de diversos processos de mediação importantes no Oriente Médio, como o programa nuclear iraniano; contencioso árabe-israelense e o próprio conflito na Síria.

Já a Arábia Saudita, auxiliada pelas monarquias satélites do Golfo, liderou o movimento anti-Assad no mundo árabe incentivando e armando os rebeldes. O reino de Al-Saud vê na liquidação do regime sírio o caminho ideal para o desmantelamento do “Corredor” político xiita em formação na região sob patrocínio iraniano. Aniquilar o eixo Irã-Iraque-Síria-Líbano é elemento crucial para salvaguardar os interesses sauditas e conter a crescente influência persa.

Os sauditas e seus aliados na Liga Árabe, entretanto, carecem de legitimidade para atuar contra Assad. Afinal, agiram com extrema tibieza em eventos recentes, como as revoltas no Bahrein, no Iêmen ou até mesmo no caso das atrocidades cometidas em Darfour – sem falar na absoluta inépcia de sua atuação no contencioso israelo-palestino. As realezas árabes caíram em descrédito ao blindar determinadas nações do Golfo quanto às transgressões aos direitos humanos. Sem as bandeiras da liberdade e da democracia, restou o mantra da distensão político-religiosa para inflamar o confronto.

Enquanto o conflito sírio apresenta ao mundo imagens cada vez mais aviltantes, as potências ocidentais seguem a estratégia elaborada por Israel que consiste em: 1) não confrontar a Rússia; 2) dar tempo para Assad finalizar com o movimento rebelde e restaurar a ordem e o controle sobre o país.

Tudo isso ocorre sob uma cortina diplomática calcada num plano inexequível do Kofi Annan com apoio da inoperante Liga Árabe. O envio de observadores internacionais – sem o poder de observar – serve apenas para dissipar as desconfianças sobre o real posicionamento das grandes potências.

A saída para o conflito na Síria, na atual circunstância, só se tornará viável com o apoio à criação de um grupo de países mediadores que deverão atuar à margem do epicentro do conflito, imbuídos de legitimidade e credibilidade para servir de interlocutores confiáveis entre as partes. Até o momento, tanto o Ocidente quanto a Liga Árabe fracassaram na tentativa de influenciar os acontecimentos na Síria.

HUSSEIN ALI KALOUT
Cientista político, especialista em Oriente Médio, é professor de relações internacionais e diretor de Relações Internacionais do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

FONTE: Correio Braziliense – 27/06/2012

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