German Advance
Joschka Fischer* – Foreign Policy/O Estado de S.Paulo

Este ano marca o centenário da deflagração da 1.ª Guerra, o suficiente para refletirmos sobre as lições dessa catástrofe.

Teremos aprendido alguma coisa dos fracassos da política de governos, de instituições e da diplomacia internacional ocorridos em 1914? Grandes partes do Hemisfério Norte continuam lutando com o legado dos grandes impérios europeus – Habsburgo, russo e otomano – que entraram em colapso depois da 1.ª Guerra, ou cujo declínio, como o do Império Britânico, se iniciou pela guerra e foi selado por sua continuação ainda mais sangrenta, uma geração mais tarde. As zonas de fratura que dele derivaram – nos Bálcãs e no Oriente Médio, por exemplo – estão na origem de alguns dos mais graves riscos para a paz regional e mundial.

Depois do fim da Guerra Fria e do colapso do sucessor soviético do Império Russo, a guerra voltou aos Bálcãs em condições semelhantes às que predominavam no período anterior a 1914 e um nacionalismo agressivo reconfigurou a Iugoslávia que se desintegrara em seis países. Por um momento, a Europa correu o risco de reeditar o confronto de 1914. França e Grã-Bretanha apoiavam a Sérvia, e Alemanha e Áustria eram favoráveis à Croácia.

Felizmente, não houve nenhuma recaída. Três fatores contribuíram para evitar o desastre: a presença militar dos EUA na Europa, o progresso da integração europeia e o fato de a Europa ter abandonado a política das grandes potências. Mas a paz precária atual se tornará permanente se os países dos Bálcãs acreditarem na União Europeia.

Essa esperança não existe para o Oriente Médio, cujas fronteiras políticas foram estabelecidas em grande parte pela Grã-Bretanha e pela França durante a 1.ª Guerra, quando os diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot negociaram a divisão do Império Otomano. Do mesmo modo, a criação de Israel remonta à Declaração de Balfour de 1917, segundo a qual o mandato britânico na Palestina apoiava o estabelecimento de uma pátria para o povo judeu.

O Oriente Médio criado na época é, aproximadamente, o de hoje. Testemunhamos sua desintegração porque o plano de Sykes-Picot sempre previu uma (ou duas) potências hegemônicas externas dispostas a manter a estabilidade canalizando (ou suprimindo) os numerosos conflitos da região. À Grã-Bretanha e à França, as primeiras potências hegemônicas, sucederam-se os EUA e a União Soviética – e, por fim, apenas os EUA.

A má sorte dos EUA no Iraque e sua relutância em preservar seu grau de comprometimento com a região fizeram com que a estrutura do Sykes-Picot deixasse de se sustentar pela inexistência de outra força externa preparada para preservar a ordem. O vácuo foi preenchido por correntes do Islã político, pelo terrorismo, pelos movimentos de protesto, pelos levantes, pelas tentativas de secessão por parte de minorias nacionais ou religiosas e pelos países que aspiravam a exercer a hegemonia regional.

Acontecimentos na Síria e no Iraque já sugerem o mesmo e o futuro do Líbano e da Jordânia tornou-se cada vez mais incerto. Um dos poucos aspectos positivos da região é que não vemos rivalidades regionais pelo poder global. Mas a luta regional pelo predomínio entre Irã e a Arábia Saudita (com Israel como terceiro ator) poderá revelar-se perigosa. A lembrança de 1917 poderá despertar a preocupação maior na Ásia Oriental, onde foram se acumulando os componentes de um desastre semelhante: armas nucleares, a ascensão da China como potência global, disputas territoriais não solucionadas, divisão da Península da Coreia e ressentimentos.

Entretanto, há motivos de otimismo. O mundo mudou drasticamente desde 1914. Com a revolução das comunicações, criou interdependências maiores. A tecnologia militar, a mentalidade de políticos e cidadãos, a estrutura da diplomacia mudaram. Mas não devemos esquecer que, em 1914, a maioria dos atores considerava impossível a concretização do desastre iminente.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

*Joschka Fischer foi ministro do Exterior e vice-chanceler da Alemanha de 1998 a 2005.

FONTE: O Estado de S. Paulo

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